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[Analisando] A Paixão de Arlequim – Neil Gaiman

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Como todos sabem, este mês está dedicado ao aniversário da série Sandman. Porém, não pude deixar de aproveitar a oportunidade para trabalhar com um dos quadrinhos do Neil Gaiman que mais gosto: A Paixão do Arlequim (Harlequin Valentine).

Começo este artigo pelo final do quadrinho, pois neste são apresentas informações básicas acerca dos objetos centrais do texto: o Arlequim e, conseqüentemente, a Commedia dell’Arte. E, em grande parte, ver a beleza desta produção é também conhecer a história por trás dela.

Este último consiste em uma forma de teatro improvisado que durou do século XVI ao XVIII, ele existiu ao longo de toda Europa[bb], tendo começado sua fama na Itália. Sua origem, porém, pode remontar a um período anterior, tendo inclusive pessoas que a retomam à Roma ou à Grécia Clássica (o que, sinceramente, soa como balela para qualquer um que entenda de Antigüidade), porém ainda não há estudos nem consenso suficientes acerca deste aspecto.

pagliacci_original_score_coverMas, apesar de não haver notícias precisas o suficiente sobre seu ponto de origem, podemos afirmar com certeza que a idéia da Commedia dell’Arte influenciou profundamente a arte dos períodos seguintes, não apenas com a sua estrutura, como também pelo universo que criou. Um exemplo disto é a belíssima ópera de Ruggero Leoncavallo, I Pagliacci (1892), que pode tanto ser ouvida pelas vozes de tenores famosos como Pavarotti quanto pelas adaptações a outras mídias, como foi o caso do trabalho de Craig Russell em sua Opera Adaptations v. 2, criada nos anos 90.

As apresentações da Commedia eram feitas geralmente em locais abertos (apesar de algumas grandes companhias terem aberto seu caminho até os palácios), eram organizadas por artistas itinerantes e, como o nome deixa bastante óbvio, o objetivo central era provocar o riso. A encenação era improvisada, baseada em um repertório de personagens pré-estabelecidos extremamente caricatos, identificados por seu figurino, máscaras ou objetos que portavam.

Dentre este lugar-comum de personagens existia o Arlequim, cuja origem pode remontar a épocas anteriores. Ele, na época da Commedia, era, em termos gerais, um bufão, alguém levado pelo desejo e pela luxúria e que acabou ganhando a simpatia dos públicos e se tornou uma das figuras mais importantes desta forma teatral. Ao longo do tempo (ou, mais especificamente, com o surgimento da Arlequinada), o Arlequim acabou até mesmo ganhando alguns poderes que o ajudavam a pregar peças, tais como a invisibilidade.

Esteticamente, este homem luxurioso é bastante familiar a nossas mentes; poucos não lembram dos losangos coloridos que permeavam toda sua fantasia. Mas não é apenas este que o caracterizava: havia também sua indispensável máscara e seu slapstick (porrador), que mais tarde veio a transformar-se em um cajado.

Mas como pensar em um Arlequim sem sua desejada Columbia? Os dois personagens (junto ao Pierrô) foram os que se mantiveram com maior força nas nossas mentes, mais ainda do que a própria Commedia dell’Arte. Poucos conhecem o Pantaleão, Polichinelo ou o Doutor, creio eu que isto provêm de nosso carnaval, uma vez que as três fantasias acima citadas eram extremamente populares na época de nossos avós, e hoje tornaram-se clássicos do carnaval.

Arlequim e Colombina, de Almada Negreiros
Arlequim e Colombina, de Almada Negreiros

harlequin_valentine_coverO conto da paixão do Arlequim gira em um sentido parecido: os únicos personagens que nele importam são o homem e sua paixão feminina (apesar de haver referências a versão contemporânea de outros personagens). E não poderia ser diferente. Mas o mais interessante é que o foco não são as confusões causadas, mas puramente um homem apaixonado que acaba se doando na cegueira de sua paixão. Tanto que a história se passa no dia dos namorados (no original há uma relação do título Harlequin Valentine com Valentine’s Day).

A roupagem do escrito, porém, é bastante contemporânea, tanto na questão de cenário quanto na resposta da Colombina aos acontecimentos à sua volta; sendo o Arlequim um contraponto dentro disto tudo, pois ele permanece o mesmo de séculos atrás, com seu figurno colorido e movimentos esdrúxulos; é uma criança em meio a um inverno europeu.

O conto, bastante curto, trás uma sensação muito gostosa de magia; atrás do costumeiro, das ruas e das pessoas comuns, há um espírito que passeia pela cidade pregando peças em todos aqueles que lhe apetecem; pregando peças e se apaixonando. O mundo é como um enorme brinquedo para ele; e seu único ponto fraco (que é ao mesmo tempo seu ponto principal) é a paixão.

Mas o Arlequim não é um homem único ou especial, ele é um arquétipo, ele pode ser qualquer um. Ele existe porque tem que existir, porque quer existir, e não existe, portanto, como uma pessoa, mas como uma idéia que se mantêm viva dentro de diversas pessoas. O coração de Arlequim é repassado, ainda que o espírito deste não esteja contido em uma pessoa só. Como nas peças da Commedia, não importa o ator, mas a máscara que ele leva. E qualquer um pode tomar esta máscara dele, automaticamente retirando seu conceito e tomando-o para si. No texto de Gaiman, porém, o Arlequim, apesar de haver repassado seu papel, continua dentro do seu antigo portador.

harlequinvalentineAlém da bela história que nos leva de volta ao tempo da Arlequinada, o quadrinho vêm ilustrado pelo traço extremamente realista de John Bolton, que já trabalhou tanto no ramo dos quadrinhos quanto ilustrando livros de RPG. O estilo de Bolton consegue complementar a obra de Gaiman pois ele é capaz de trazer para o quadrinho o ar sombrio da realidade, como se ele quebrasse o fantástico por trás do texto e o repassasse para o nosso mundo. A importância do imaginário é diminuída e qualquer um de nós pode tomar o lugar do Arlequim, da Colombina, do Pierrô ou do Doutor. É uma mera questão de estar no lugar certo na hora certa.

Já li diversas histórias do Neil Gaiman e todas são capazes de deixar um sentimento em meu peito mesmo após o fechamento das últimas páginas de texto. Mas você nunca se acostuma com isto e é sempre um prazer ler e reler suas histórias. Para aqueles que não conhecem A paixão de Arlequim, comprem. E dinheiro não é o problema, a revista custa R$9,90 na sua versão da Conrad.

Para os curiosos, antes do lançamento da revista, em 2001, foi lançado uma préviacom a capa americana e mais quatro páginas da revista. Deixo estas abaixo, espero que apreciem a arte de Bolton.

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Comentários 2
  1. Adorei o artigo! Além de ser muito bem escrito e de ter me deixado muito curiosa em relação à obra (as ilustrações são geniais), ainda traz um pouco de História e informações valiosas a respeito desses personagens que vão muito além do carnaval carioca.

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